domingo, 22 de março de 2009

Para o trabalho "Passagens" de Antonio Carlos Goper, 2008. Disponível no blog http://antoniogoper.blogspot.com

Sobre as passagens ou episódios de um corte na Consolação

São Paulo cegou, nos anos setenta, certa riviera boêmia que, antes, sabia falar, sem censura, sob o olhar imponente de uma daquelas artes. A sétima. Naqueles anos setenta, dois arcos em forma de concha, cinzentos e desajeitados, formaram os portais de um rasgo subterrâneo sob o asfalto de uma consolação que, àquela altura, já soterrara os trilhos de seus bondes e cortara parte de suas calçadas. Alguns anos depois, enquanto as belas artes se repartiam e à riviera cegada se somava a mudez, o rasgo subterrâneo procurava sobreviver em meio a águas mal cheirosas, habitantes mal vistos e pisos carcomidos. Decrépita passagem que assistia a passagem de um tempo tão apressado como eram apressados os passos que por ali circulavam.
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Novembro de dois mil e oito. Passagens é o nome de uma exposição que a passagem subterrânea da Consolação abriga. Contundente ironia sobre um velho rasgo que insiste em se manter vivo, quer seja por aquilo que mostra, quer seja pela ambiguidade de seu próprio nome. E tantas são elas, essas passagens. No lugar existe, hoje, um singular mercado livreiro que, por si, guarda o significado de suas intenções. São livros alocados no caminho de passantes, em corredores formados por prateleiras preenchidas com volumes enfileirados. Volumes usados, gastos, marcados por mãos, olhares e saberes. Livros marcados pelo tempo. Pela passagem do tempo. Uma passagem entre muitas outras, como aquela que figura nas paredes, cheias de papéis colados, formando um infinito quebra-cabeça de imagens perdidas no tempo. De tempos passados. Machados, Oswalds e Nelsons. Por isso a exposição Passagens, em parte enclausurada numa longa vitrine, traz a marca dessas outras passagens. São leituras e interpretações de um nome, este nome que vem insistentemente se repetindo aqui.
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Das obras dos 13 artistas que lá expõem, recorto apenas aquelas que não trazem outra coisa se não imagens da própria passagem. Meros documentos fotográficos do próprio local onde a exposição ocorre. Nessas imagens, realizadas por Antonio Carlos Goper, vemos as mesmas paredes forradas de imagens. Machados, Oswalds e Nelsons.
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Vejo a exposição e, antes de ir embora, percebo que, naquelas fotografias ilusoriamente creditadas como meros documentos fotográficos, existem imagens que não estão coladas nas paredes. Delicado trabalho de manipulação. Alguns rostos aparecem apenas nessas fotografias, sérios, mas sorrindo silenciosamente para aqueles que não se deram conta do jogo proposto. Sutil armadilha. Pequenos rostos que disputam virtualmente o mesmo espaço que abriga aqueles Machados, Oswalds e Nelsons. Suave interferência, não no espaço, mas no registro que dele se faz. E eu saio mais satisfeito ainda, porque sei que esses rostos são de uma mesma pessoa. Todas elas trazendo diferentes marcas do tempo. De outras passagens. Poéticas. De histórias inseridas num espaço que, também sei, estiveram por ali todos esses tempos. Noutros tempos. Entre a riviera e as belas artes.

novembro de 2008

Carlos Camargo

Um comentário:

Fabio S. Cardoso disse...

Catito:
que boa nova, este blog. A internet está, a partir de agora, mais sofisticada com seus textos e suas novas leituras. Se me permite a sugestão, para além de seus textos de catálogo, você poderia incluir, aqui, aquelas impressões sobre as exposições e espetáculos teatrais. Que lhe parece?
Um abraço,
Fabio Cardoso